quinta-feira, 26 de novembro de 2009

corpofragmentação

A era do hipertexto (contemporaneidade) caracteriza-se, sobretudo, pela fragmentação que, em suas últimas instâncias, cumpre o papel de fragmentar o corpo, desdobrando-o em avatares, duplos imagéticos, ou ainda duplos eletrônico-virtuais. O que se observa então é o corpo em constante conflito com a imagem que projeta. Esta última, desvinculada de sua materialidade primeira e gozando de certa autonomia com relação à sua matriz, o corpo físico.
A aceleração, a virtualização, a globalização e a digitalização estariam “(...) provocando importantes mutações na definição da subjetividade contemporânea, em proveito de outras construções identitárias baseadas em novos regimes de constituição das imagens do corpo e do eu.” [1] Assim, tendências corporeistas, exibicionistas e performáticas alimentam a nova lógica de construção da subjetividade, em detrimento da introspecção e sondagem privada que sucumbem diante do império da imagem e dos efeitos instantâneos:

(...) na medida em que uma representação do eu se expande, a matriz performática fica atravancada com personas simuladas que podem usurpar o papel da auto – representação orgânica.
O corpo como representação renuncia à sua soberania, deixando a imagem do corpo disponível para apropriação e para seu restabelecimento em redes de símbolos distintas daquelas do mundo real. (...) À luz dessa possibilidade, deveríamos renunciar a noções essencialistas do eu, da personalidade e do corpo, e assumir papéis dentro da grade dramatúrgica da vida quotidiana. Entretanto, há sempre uma inquietação que acompanha essa possibilidade utópica. Essa ansiedade não vem tanto da curiosa não – posição criada pela ausência de qualidades fixas, mas sim pelo medo de que o poder da reinvenção se encontre em outra parte. Sente-se que forças externas hostis, e não forças automotivas, estão nos construindo enquanto indivíduos.
[2]

Esta nova corporeidade - a nova forma de se viver o corpo - advinda da hipertrofia da comunicação pelas imagens - e da visão - talvez esteja produzindo uma agressão contra a integridade corporal, na medida em que busca anular o exercício diário do deslocamento, da comunicação presencial exercida “olho no olho”, do risco, do movimento, da propriocepção e da colocação do corpo como intermediário presencial das interações com o mundo - anula a experiência do “aqui e agora”. Tais interações são agora intermediadas por dispositivos eletrônicos que, ao conferirem a tele-presença, anulam a dimensão do risco, posto que a distância proporciona certa segurança num mundo tomado pela estética da violência, veiculada diariamente nas imagens da mídia terciária [3]. Tal modalidade midiática, por sua natureza de apreensão imediata, acaba por suprimir o tempo necessário para sua decifração, provocando assim uma inversão: “Ao invés de as imagens nos alimentarem o mundo interior, é o nosso mundo interior que vai servir de alimento para elas, girar em torno delas, servir de escravo para elas. Transformando-nos em sombras das imagens, ou objeto da sua devoração.” [4]
O papel da mídia terciária mostra-se bastante influente no que diz respeito à construção da subjetividade. Sendo grande aliada dos procedimentos do processo civilizatório da humanidade, a mídia terciária contribui para a “sentação” [5] da humanidade que, tendo sido colocada sentada sobre uma cadeira durante todo o período escolar (aproximadamente 12 anos), desfruta agora de uma nova forma de pertencer ao mundo: interações que acontecem à distância, estabelecidas no resguardo do lar e respaldadas pela passividade exercida pela cadeira.
Tal processo de “sedação” constitui conseqüência direta das descobertas tecnológicas e o nomadismo por elas trazido no decorrer do processo civilizatório. No início éramos nômades saltadores, nos deslocávamos, em larga escala, no sentido horizontal-vertical. Depois, descobrimos a agricultura, nos domesticamos e passamos a nos deslocar (cada vez menos) no sentido horizontal. E daí em diante passamos a contar com todos os aparatos tecnológicos posteriormente construídos no intuito de serem extensões de nossos corpos, aparatos que trabalham por nós garantindo o mínimo esforço. A memória daquele deslocamento vertical persiste, contudo, em nossas colunas vertebrais e nas partes mais obscuras de nossos corpos. Daí a necessidade de colocar todo esse mundo sentado: a necessidade de domesticar/civilizar este bicho-homem saltador e andarilho.

Para manter sentados os velhos e novos guerreiros criaram-se as instituições de educação, de formação, de informação e de entretenimento que nos acompanham a vida toda. (...) E seus instrumentos de sedação sempre foram e continuam sendo nada mais que as imagens. [6]

Sentar é uma atitude em relação ao mundo, e sentar o corpo equivale a sentar nossa mídia primária, nossa capacidade comunicativa e de ação, nossa criatividade e construção de vínculos.

Aliadas às imagens produzidas pela mídia terciária e suas máquinas de imagens, aliadas à anulação do espaço introduzida pela mídia elétrica e seu tempo veloz que não dá tempo para a decifração, aliadas à perda do presente e da presença gerada pela exacerbada aceleração, aliadas à conseqüente perda da corporeidade (e possivelmente, em alguma medida, também da propriocepção [o Word até corrige essa palavra!]), trazida pela perda das referências espaciais, a cadeira e suas variações poderão constituir o golpe de misericórdia dado na agilidade e na mobilidade do homem e seu pensamento. Um pensamento sentado significa um agir acomodado, conformado e amansado, incapaz de sequer decifrar o mundo ao seu redor e menos capaz ainda de atuar de modo transformador.
[7]

[1] SIBILA, P. Do homo psico-lógico ao homo tecno-lógico: a crise da interioridade. In: Semiosfera, nº 3, ano 7. Universidade Federal do Rio de Janeiro.

[2] ENSEMBLE, Critical Art. Distúrbio Eletrônico. 1 ed. São Paulo: Conrad, 2001. p.

[3] Sistemas de mediação que utilizam um aparato de emissão e outro de captação das imagens: telégrafo, rádio, telefone, computadores e televisão, entre outros.
BAITELLO, Norval. A Era da Iconofagia. Ensaios de Comunicação e Cultura. 1ed. São Paulo: Hacker Editores, 2005. p. 34.

[4] BAITELLO, p. 35.

[5] BAITELLO, p. 36.

[6] BAITELLO, p. 36.

[7] BAITELLO, p. 37.