sexta-feira, 26 de junho de 2009
O CORPO-CONSUMIDOR COMO (NÃO)RECONHECIMENTO DO OUTRO
É possível observar em nossa sociedade, atualmente, um certo movimento dito como de “retribalização”, seja desta como um “todo”, por conta, essencialmente, do advento dos meios eletrônicos de comunicação, que nos anos 60 inspirou o teórico canadense Marshall McLuhan a criar a expressão “aldeia global”, seja de determinados grupos de indivíduos dentro desta, especialmente nos grandes centros urbanos, que se agrupam e se identificam nas chamadas “tribos urbanas” (neotribalismo). Curiosamente, na primeira, pode-se observar, em um primeiro momento, uma ausência de corporeidade (pois o “corpo” enquanto mídia primária da comunicação vê-se apenas nos extremos, não como “meio” neste processo comunicacional), já no segundo, observa-se justamente o movimento contrário, a prevalência do corpo como meio de identificação entre os indivíduos e como aquilo que lhes confere identidade.
Podemos notar uma relação histórica entre o surgimento dos meios eletrônicos (principalmente com o advento da televisão na segunda metade do século XX) e o surgimento deste neotribalismo nos grandes centros urbanos (que se expandiram vertiginosamente nesta mesma época). Provavelmente, o principal elemento que liga estes dois fenômenos é a propaganda e o consumo. Se até então, a sociedade capitalista estava sob o paradigma dos meios de comunicação e da indústria de massa (todos possuam o mesmo tipo de televisor, o mesmo tipo de carro, o mesmo tipo de roupa), com o surgimento de novas mídias e com o fenômeno da contracultura nos anos 60, o dito mercado (a indústria) percebeu que os tempos eram outros e que era preciso modificar o discurso da propaganda. Agora, a premissa não era mais de todos terem as mesmas coisas (ou todos “serem iguais”), mas “o legal era ser diferente”, uma diferença calcada na aquisição de bens de consumo mais individualizados, para um determinado público ou segmento. E, assim, surgiram nas décadas seguintes as diferentes tribos, ou estilos, ou “modos de ser” – os punks, os blacks, os disco, os gays – muitos destes grupos tendo sua origem nos movimentos sociais de contracultura, mas que foram rapidamente assimilados pelo mercado, que passou a produzir produtos específicos para cada “gênero”.
Desta maneira, o reconhecimento do “outro” nessas metrópoles se dá não pelas suas qualidades mais pessoais ou pelas diferenças que o tornam único como indivíduo, mas pela forma mais prática e rápida, ou seja, a comunicação básica, aquela que procede a fala e estabelece as condições de aproximação, que são os símbolos externos ostentados no corpo (vestuário, adereços, marcas e objetos pessoais). Desta maneira, a premissa hegeliana do movimento de reconhecimento (“eu me reconheço em minha individualidade em mim e em outro, e o outro é por mim reconhecido como uma individualidade e também me reconhece”) fica comprometida neste novo quadro, já que a individualidade não se observa propriamente como uma consciência-de-si ou uma essência, mas se dá sob uma lógica de consumo e visibilidade, na qual a certeza de si como essência e este ser-Outro, como também o reconhecimento do outro como consciência independente, são determinados pelo poder compra de cada um e pelo capital aplicado na qualidade dos bens de consumo individuais ostentados.
Não estou querendo dizer com isto que o movimento de reconhecimento do outro não passe por sua corporeidade. Justamente, como cita Manoel Fernandes “o corpo é nesse sentido uma carta palimpsesto, um mapa que foi muitas vezes redesenhado, por isso nele é possível reconhecer a demarcação de certos percursos identitários” (p. 57). Os próprios adornos, as perfurações, as pinturas ocupam territorialmente o corpo de maneira que indicam uma temporalidade. Mas o que se enfatiza na proposição aqui apresentada é o que o próprio Manoel Fernandes explica como “a maravilhosa mágica, de transformar o diferente em igual e desqualificar o que é simples e concreto, possibilitando propor que diferenças só existam e possam se expressar no interior da lógica da mercadoria como realizadoras de um ato de consumo” (p. 61).
No entanto, apesar do movimento de reconhecimento ficar comprometido neste contexto, é possível observar que ele, ainda assim, se dá de certa maneira. No interior destes grupos informais, o indivíduo se reconhece como membro do grupo e reconhece o outro pela sua imitação (fator de agregação social), como também reconhece aqueles que não compartilham do mesmo espírito barroco que o seu, ou seja, como aquele exterior à tribo. Desta maneira, gera-se então uma individualidade (coletiva) e uma percepção sujeito – mundo frágeis, deixando muito mais claro do que uma identidade individual a crise (ou insustentação) desta, como também um sentimento de insegurança em relação ao mundo contemporâneo que faz o indivíduo fechar-se em grupos para proteger-se. A artificialidade destas relações pode ser entendida na passagem de Hegel sobre o não-reconhecimento do outro: “Essas consciências ainda não se apresentaram, uma para a outra, como puro ser-para-si, ou seja, como consciências-de-si. Sem dúvida, cada uma está certa de si mesma, mas não da outra; e assim sua própria certeza de si não tem verdade nenhuma, pois sua verdade só seria se seu próprio ser-para-si lhe fosse apresentado como objeto independente ou, o que é o mesmo, o objeto [fosse apresentado] como essa pura certeza de si mesmo. Mas, de acordo com o conceito do reconhecimento, isso não é possível a não ser que cada um leve a cabo essa pura abstração do ser-para-si: ele para o outro, o outro para ele; cada um em si mesmo, mediante seu próprio agir, e de novo, mediante o agir do outro” (p. 128). No entanto, o sujeito na tribo liberta-se da responsabilidade de escolha e age coletivamente. Entretanto, não podemos deixar de observar que há, na imitação, o desejo de reconhecimento pelo outro, que, porém, não se completa, pois não há, verdadeiramente, consciência e agir independentes, já que a tribo é o que dá identidade.
Observamos, atualmente, uma sofisticação desta construção da individualidade sob a lógica segmentada do mercado. Mais uma vez, vemo-nos diante de uma explosão tecnológica dos meios de comunicação (calcados na tecnologia digital) que geram consumos cada vez mais individualizados, considerando não mais nichos ou células de mercado, mas o indivíduo atomizado. Desta maneira, o “’legal’ agora não é somente ‘ser diferente’ mas ser ‘você mesmo’”, consumindo bens diversos não mais específicos de um determinado grupo, mas construindo a individualidade de forma autônoma, por meio de combinações, experimentações e misturas de fragmentos de diversas linhas de produtos, como num supermercado, constituindo um mosaico, explicitando sua flexibilidade pessoal e sua abertura para as diferenças, aspectos apreciados pelo mercado como um todo, desde o de bens de consumo até o mercado de trabalho. Vemos aí, permanecer a lógica de reconhecimento de si e do outro sob a égide de mercado, no entanto, de uma maneira mais leve e menos determinante, já que a consciência de si como corporeidade é construída de forma mais individualizada, do tipo “faça-você-mesmo” para o consumidor. Caímos, então, na mesma relação entre identidades frágeis, não como a pura consciência-de-si, mas como o reconhecimento de si e do outro ainda dentro de uma lógica de consumo, que gera a anulação do “outro” que não consome. Neste movimento de “independência” e “dependência” da consciência-de-si sob tais aspectos observados, indagamos quem é senhor e quem é escravo nestas relações. Tudo leva a concluir que único senhor dentro desta lógica é, em última instância, o mercado.
Post-scriptum:
Apesar das observações aqui feitas é importante ressaltar que tal lógica de reconhecimento é o que vem sustentando as relações entre os indivíduos na sociedade contemporânea e, nos últimos tempos, garantindo o reconhecimento, por exemplo, de indivíduos pertencentes às chamadas minorias dentro da dinâmica social (de mercado) como grupos consumidores. No entanto, ter consciência sobre até que ponto as pessoas são reconhecidas em sua individualidade e não estão sendo anuladas nestas relações de indiferença (já que a diferença só é reconhecida como poder de compra) é o que talvez possa reverter este processo e tornar o reconhecimento de si e do outro concretos.
Referências bibliográficas complementares:
BAITELLO JR, Norval. A mídia primária, origem e chegada de toda comunicação.
DE SOUSA NETO, Manoel Fernandes. Mapas do corpo, territórios de identidade.
MAFFEROLI, Michel. “A forma faz corpo” in No fundo das aparências. São Paulo: Ed. Vozes.
McLUHAN, Stephanie; STAINES, David (Org.). McLuhan Por McLuhan. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005.
SEVCENKO, Nicolau. A corrida para o século XXI. São Paulo: Cia das Letras, 2001.
E caderno de anotações das aulas de Hipertexto III. José Milton C. Ribeiro Jr.
Referências audiovisuais:
Contardo Calligaris. "O corpo masculino" in Café Filosófico. TV Cultura. 21 de Junho de 2009.
José Milton C. Ribeiro Jr. Qual a sua identidade? Vídeo. 2008. 3 min.
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Super interessante essa análise, tem muito de Marx, mas um pouco inovadora. Hegel, Marx e McLuhan, um bom texto para ler e ajudar no entendimento de "para onde caminha o consumo e a sociedade".
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