quarta-feira, 24 de junho de 2009

O corpo esvaziado

Há um grande entrave nas discussões a respeito do hipertexto e, principalmente, sobre a questão da interatividade, que recai sobre a necessidade de interação e reconhecimento do “outro”, a pessoa desconhecida com a qual você irá se comunicar e que deverá ser a base de pensamento na hora de se criar toda uma linguagem hipertextual.
O que acontece é que está havendo uma limitação na hora de se dar voz ao outro. As escolhas que chegam até ele já estão totalmente pré-estabelecidas e os indivíduos estão se resumindo a logins, números de acesso e senhas. O hipertexto está excluindo toda a corporeidade das pessoas no momento de pensá-las como sendo os “outros”. Estão esvaziando os corpos a fim de poder controlá-los.
O nível mais primário da comunicação e negociação com o outro acontece a partir do corpo. Podemos citar diversas situações sócias para ilustrar isso, que vão desde a maneira de vestir ou desvestir o corpo até suas gestualidades. Percebemos que atualmente ocorre uma exacerbação do corpo que, por sua vez, está em função de uma lógica de identificação. O reconhecimento do outro é essencial até mesmo para que possamos nos reconhecer como indivíduos. Não há individualidade sem o outro.
O homem social interage e depende da convivência com outros indivíduos. Sua própria individualidade só ocorre mediante um contato com o outro. Pela necessidade de convivência e, posteriormente, de aceitação, são criados mecanismos para que haja uma integração para com seus semelhantes. Para isso são criados arquétipos, máscaras representando uma imagem que ganhe força na coletividade. É preciso ressaltar, neste momento, a importância da imitação na vida social. A sociedade necessita da criação e partilha desses arquétipos e da teatralidade que une o corpo coletivo.
As teatralidades vividas em nosso dia a dia são formadoras de um corpo social que serve de abrigo às pessoas, atrás do qual é possível proteger-se e se esconder. Mas dentro de tantas diferenças, das peculiaridades de cada um, encontramos conflitos, muitas vezes insuperáveis, sejam estes de valores, morais, sociais. Nestes casos há sim uma segregação, mas que, por signos de reconhecimento, permitem que os indivíduos encontrem parceiros e aliados. É o ressurgimento do tribal. Um exemplo disso é a moda, associando um número x de pessoas que se identifiquem com aquele perfil e isolando-os dos outro, com estilo diferente.
O corpo (e o que se faz com ele) é importante para que haja esse reconhecimento e posterior agregação a em determinado grupo. Os códigos podem ser passados através da aparência (vestuário, modificação corporais como tatuagens e piercings), hábitos e rituais compartilhados. Não necessariamente a pessoa faz parte de uma tribo apenas, ela vai e volta entre várias e incorpora, para cada ocasião, o traje apropriado ao espaço onde ela irá se inserir.
Essa exacerbação do corpo cria, entretanto, uma dualidade de exacerbação-desaparecimento. Destaca-se o próprio corpo para fazê-lo desaparecer no corpo coletivo. Com isso cria-se um poderoso mecanismo de controle do corpo; exaltando apenas sua superficialidade, sua aparência, esvazia-se o corpo e o conteúdo parece não importar. Por outro lado, a não inserção em nenhum grupo específico cria um isolamento total do indivíduo, talvez o maior medo da atualidade, que é o de tornar-se invisível. O corpo fica entre esse paradoxo e muitas vezes o que acontece é que a exaltação de sua exterioridade faz com que os indivíduos fiquem, contraditoriamente, por livre e espontânea vontade, reféns de uma imagem, um arquétipo que para sempre será sua meta a ser alcançada.
Claro que o mercado, percebendo essa situação, já se organizou e tira proveito explorando esses grupos específicos. A moda, os cosméticos, os alimentos, tudo é segmentado e voltado para o público alvo já destinado.; quando novas tribos surgem, novas mercadorias voltadas especificamente a eles são vendidos.
Talvez devido a este esvaziamento do corpo estes programas de interatividade no qual as possa se usar um avatar ou criar seu próprio perfil façam tanto sucesso. Com uma crescente pressão sobre como deve ser/agir o próprio corpo, a insatisfação com a própria imagem também é decorrente, ainda mais se você não se insere em nenhum grupo popular e continua invisível. Não satisfeito com sua própria identidade, o resultado é que, num mundo virtual, as características admiradas e que não fazem parte de sua personalidade podem ser incluídas num personagem que se tornará seu “segundo-eu”. A satisfação, mesmo que não real, pode ser alcançada, mesmo que por breves instantes. Seria um modo de fuga, de escape de uma imagem de si frustrada para um mundo de fantasia onde você é o personagem principal.
O que as novas mídias estão fazendo é descorporificando as pessoas e dimensionando suas atenções às máquinas, aos avanços tecnológicos e às possibilidades técnicas cada vez mais avançadas que estão surgindo. A identidade está sendo negada ao corpo e por isto ela está buscando outras formas de se encontrar, como no mundo virtual, por exemplo.
O corpo, o princípio de tudo, está se esvaziando. Sem a comunicação corpo a corpo e as linguagens corpóreas, estes avanços em prol da evolução de uma linguagem perdem seu sentido. Reduzir o corpo a um conjunto de números, controlado, fadado ao conformismo, é um triste fim a aquele no qual todas as teorias da comunicação devem seu começo.

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